sábado, 22 de março de 2008

Música Brasileira

Entrevista do "Pasquim" com o grande Lupicício Rodrigues


O ano era 1973. Eu tinha 6 anos. Estávamos em pleno Governo Médici. Passávamos ainda pelos últimos momentos do chamado “Milagre Brasileiro”. A classe média, em sua maioria, feliz da vida. O crediário para comprar bens de consumo duráveis e semi-duráveis era a grande novidade. Os setores médios urbanos cresciam e o Brasil começava a deixar de ser um País eminentemente rural. Coisas novas apareciam no cenário cultural: o grupo Secos e Molhados, liderado por Ney Matogrosso, lançava seu primeiro disco. Aliás, as guitarras e os aparatos musicais eletrônicos do Rock and Roll já eram uma realidade que invadia nossa MPB desde a “Jovem Guarda” (Anos 60 e 50), de Roberto Carlos, mas, principalmente, depois do “Tropicalismo”, de Caetano e Gil. Na política, o pau comia. A repressão e o arbítro atingiam seu apogeu. Alguns setores estudantis tentavam se rebelar em manifestações esporádicas nas ruas e nas universidades. Uns poucos pegaram em armas e, sem qualquer apoio popular, viraram simples terroristas, assaltantes de bancos, ladrões. E o pau comia feio. Nos EUA, o primeiro show de música via satélite era apresentado por Elvis Presley, no Havaí. Ao mesmo tempo, no Brasil, a “Vênus Platinada”, assossiada ao grupo estrangeiro “Time-Life”, crescia na mesma proporção do aumento da nossa dependência para com as transnacionais e, claro!, da repressão militar. Era o ano da estréia de três programas que se tornariam campeões de audiência e que estão no ar até hoje: Globo Repórter, Esporte Espetacular e Fantástico. Era, também, a estréia da excelente novela “O Bem Amado”, com Paulo Gracindo, a primeira produção do gênero gravada em cores no país. O cotidiano carioca passava a ser a referência comportamental imposta para todo o país. Nas demais nações da América do Sul, a “Operação Condor” colocava em prática a "democracia" de inspiração ianque no cacete: no Chile, Pinochet depunha e assinava o presidente eleito Salvador Allende. O Uruguai também seguia o mesmo caminho, com militares tomando o poder. Com o aumento da crise no Oriente Médio, começava a Crise do Petróleo. Crise que seria o fator estutural para que o milagre econômico brasileiro, em breve, se tornasse um pesadelo inflacionário que sacrificaria os Anos 80 e 90.
É neste cenário que morrem Pixinguinha (fevereiro) e Agostinho dos Santos (julho), dois grandes ícones da velha guarda da nossa música. Mas, começava também um outro tipo de morte de alguns artistas, principalmente músicos da “Era do Rádio”, naquele contexto: o pouco espaço deixado para seus trabalhos diante da invasão da música estrangeira e dos modernismos nacionais. Nomes consagrados da antiga “Rádio Nacional” começavam a ser desprestigiados pelos jovens. Claro que tal desprezo não era como hoje, como a entrevista que fiz com Agnaldo Timóteo mostrou neste Blog. Mas, com certeza, tudo começou naquele momento. E é justamente por isso que faço questão de postar esta entrevista com um dos meus compositores favoritos: o grande Lupicínio Rodrigues, um gaúcho porreta. Um cozinheiro boêmio que gostava muito de viver, de cantar e de muié. Trata-se de uma entrevista que ele concedeu ao então combativo jornal “O Pasquim” (EDIÇÃO N.I 225 - 23 a 29-10-73) ao longo de uma madrugada inteira. É bom reparar como a elite intelectual carioca, naquele contexto, ainda se considerava o centro do mundo. É interessante verificar como fizeram perguntas arrogantes e idiotas ao grande compositor, principalmente no que se refere ao fato dele ser gaúcho e, ao mesmo tempo, um grande sambista. Parace, em certos momentos, que, pelo fato dele não estar nem aí para enguadramentos estilísticos ou posturas intelectualóides, os tolos que o entrevistaram parecem se sentirem diante de um marciano. Reparem também como o grande compesitor foi complacente com os entrevistadores. Mas, vale pela curiosidade. Confira:



"A dor de cotovelo é um barato!"

“Saímos com Lupiscínio Rodrigues do Teatro Opinião, depois de sua apresentação diante de um delirante auditório de jovens, que nunca tinha visto o grande compositor cara a cara. Júlia Steinbruck nos convidou para fazermos a entrevista na casa dela, e fomos para lá, num grupo de umas 20 pessoas. Pelos cantos do salão, vários grupos tocavam violão e batucavam. Gilson Menezes, do "Estado de São Paulo", também participou da entrevista. A uma certa altura, apareceu Sérgio Bittencourt, com a maior cara de pau, e disse: "Vocês deixam eu perguntar uma coisa pro Lupicínio?" Que fazer? Não se podia engrossar na casa da dona Júlia. É claro que a entrevista teve várias pausas - para beber, para ouvir o maior cantor brasileiro - Jamelão -, para tirar fotografias, para ouvir mil caras tocando violão, e para beber de novo. Lá pelas 4h5min. da manhã, Lupiscínio resolveu tomar umas cervejas no Grego, do seu amigo Scoulis. E lá fomos, já meio claudicantes, mas decididos: Lupi, Gessé - seu acompanhante - Jamelão, Aibino Pinheiro e seu fiel Douglas, uma negra linda - Zélia - e eu. Às 9h30min. da manhã, na calçada do seu restaurante, Scoulis nos brindou - e aos passantes que olhavam perplexos aquele bando de boêmios, que terminavam a noitada àquela hora de uma terça-feira - com alguns passos de dança, enquanto, para nosso pasmo e encantamento Lupiscínio cantava em grego. - (Jaguar).


O PASQUIM - É verdade que você é o primeiro de 21 filhos?
LUPISCINIO RODRIGUES - Nilo, eu sou o quarto de 21 filhos. Primeiro minha mãe teve três filhas mulheres, e o meu pai havia prometido que, se o quarto nascesse mulher, ele iria enforcar. Por felicidade, nasci eu, e ele não me enforcou. Por ser o primeiro filho homem, me criei como a criança mais mimada da família.

O PASQUIM - Você é um dos maiores compositores populares brasileiros. Mas sempre viveu no Rio Grande do Sul?
LUPISCINIO - Graças a meu bom Deus sempre vivi no Rio Grande do Sul. Tive a felicidade de ficar conhecido universalmente, e agradeço isso aos marinheiros que visitavam a minha terra naquela época, quando não havia transporte para lá, a não ser o marítimo. Os marinheiros chegavam em Porto Alegre, aprendiam minhas músicas e saíam a divulgar pelo Brasil.

O PASQUIM - Aqui ao lado está o melhor intérprete do Lupiscínio, aquele intérprete que mais se identifica com o Lupiscínio, e que trouxe para o Rio de Janeiro o samba gaúcho. O nome dele é José Bispo, o Jamelão. Quem também está aqui do nosso lado é Júlia Steinbruck, ex-deputada federal, e mulher interessada em música popular brasileira. Mas quem leva o papo agora com Lupiscínio Rodrigues é o nosso amigo Jamelão.

JAMELÃO - Para eu fazer perguntas ao Lupiscínio é uma questão de rotina porque eu estou sempre em contato com ele. Eu perguntaria: como vai o Batelão, Luspicínio?
LUPISCINIO - O Batelão continua sendo a melhor casa de samba do Rio Grande do Sul. E com muitas saudades tua, que fizeste aquela temporada no Batelão, deixando aquela saudade; e esperando que voltes para lá pra ver se terminas, Jamelão. Desaparecestes de uma hora pra outra, não te despediste de ninguém.
O PASQUIM - Explica para o carioca o que é o Batelão. É um bar de tua propriedade há quantos anos?
LUPISCINIO - O Batelão não é bem um bar, é um restaurante que tem música. A turma vai lá pra jantar, e jantam cantando samba. É quase o tipo do Teatro Opinião; só que como restaurante, a luz tem que ser mais clara e o samba começa às oito horas da noite e vai até as seis horas da manhã. O Jamelão nos deu a honra de sua presença nesta temporada que esteve em Porto Alegre com o Sargentelli.

O PASQUIM - Você talvez seja um compositor conhecido no Brasil inteiro, que conseguiu fazer sucesso com a idade mínima. Aos 12 anos já fazia composição para os blocos carnavalescos de sua cidade. Como é que foi essa iniciação musical no Rio Grande do Sul? Você nasceu em 16 de setembro de 1914.
LUPISCINIO - O que acontece é que na época em que eu comecei a fazer música no Rio Grande do Sul, começava a rádio no Brasil. Eu nunca fíz música com a finalidade de ganhar dinheiro. Eu nunca pensei que eu pudesse gravar uma música.
O PASQUIM - Mas aos 12 anos?
LUPISCINIO - Eu fazia de brinquedo, como faço até hoje. Não faço música pra ganhar dinheiro nem música para gravar.

O PASQUIM - Você vive de música ou tem outra atividade da qual você vive?
LUPISCINIO - Eu sou o procurador do Serviço de Defesa do Direito Autoral. Sou representante da SBACEM, sou funcionário público. Tem uma porção de outras coisas.

O PASQUIM - E cozinheiro também.
LUPISCINIO - Sou cozinheiro. Tenho um restaurante, e tem o bar. Eu faço música pra divertir, não faço profissão da música.

O PASQUIM - Qual é a sua especialidade em matéria de culinária? Qual é a sua grande atração, o carro-chefe?
LUPISCINIO - Comida popular. Essa comida de todo dia. Porque eu não sou cozinheiro de dizer que eu faço comidas difíceis, grandes pratos. Mas essa comida popular, essa comida de todo dia, eu acho que faço bem. Eu acho que cozinho melhor do que componho, do que canto.

O PASQUIM - Você se sente bem tendo como troféu de honra - a coisa que representa mais a sua música popular - a dor de cotovelo? Para fazer tantas músicas de dor de cotovelo, você teve quantas mulheres quis?
LUPISCINIO - Meu camarada, eu realmente tive muitas namoradas na minha vida. Umas me fizeram bem, outras me fizeram mal. As que me fizeram mal foram as que mais dinheiro me deram, porque as que me fizeram bem eu esqueci.

O PASQUIM - Lupiscínio tem mil histórias para contar. Por exemplo "Vingança". É uma música que em 52 dominou o Brasil inteiro. Jornais publicavam e ressaltavam o que houve na época por causa daquela música. Houve tentativas de suicídios, etc. A quem dedicou "Vingança"? Que mulher é essa, onde ela esteve, onde ela está?
LUPISCINIO - A mulher que me inspirou "Vingança" viveu comigo seis anos. E depois terminou namorando um garoto que era meu empregado.

O PASQUIM - Que idade ele tinha?
LUPISCINIO - 16, 17 anos.

O PASQUIM - Foi passado pra trás por um garoto de 17 anos.
LUPISCINIO - Não foi bem assim. É que eu tinha viajado, ela mandou chamar o garoto. Disse que queria falar com ele. Ela mandou um bilhete. O garoto com medo de mim, quando eu cheguei, me entregou o bilhete. Disse: "Olha a Dona Carioca me mandou esse bilhete. Eu não sabia o que ela queria comigo. Não fui." (Risos) Entregou a mulher. Aí eu não disse nada. Fiquei quietinho, inventei outra viagem, peguei minha mala, e fui embora.

(...)
O PASQUIM - Você tem alguma música que o tema não seja mulher?
LUPISCINIO - Se tenho não me lembro no momento.

O PASQUIM - E o seu processo de criação para a música. Você medita sobre o tema, ou o negócio vai fluindo?
LUPISCINIO - Medito sempre sobre o tema.

O PASQUIM - Mas de estalo, de vez em quando, sai um. Como aquela da vingança.
LUPISCINIO - Todos são um tema real, coisas que acontecem na hora.

JAMELÃO – Ô Lupi, ultimamente, aqui no Rio, surgiu uma certa controvérsia a respeito de uma música da sua autoria. Essa música, inclusive no programa do Flávio Cavalcanti, foi mostrada como sempre deturpando um pouco a melodia. Mas, de qualquer forma, é uma promoção. E essa música passou a ser comentada por aqui com o nome de "Bicho do Pé". O título dessa música não é "Bicho de Pé", é "Sozinha". Eu gravei essa música, é uma das músicas mais solicitadas nos "shows" em que eu me apresento. Como foi que você teve a inspiração para fazer essa música? Qual foi o motivo, a coisa que gerou?
LUPISCINIO - Jamelão, você sabe que eu servi em Santa Maria, né? E o princípio de minha vida artística foi lá em Santa Maria. E lá eu conheci essas histórias. Lá eu fiz "Zé Ponte", fiz aquela (canta): "Felicidade foi-se embora / e a saudade no meu peito..."

O PASQUIM - Essa música é sua?Não é folclore?
LUPISCINIO - "Felicidade" é. (Canta): "A minha casa fíca lá detrás do mundo / mas eu vou em um segundo / quando começo a cantar". "O pensamento parece uma coisa à-toa / como é que a gente voa / quando começa a cantar".

O PASQUIM - Que maravilha.
LUPISCINIO - Aquela outra: "No meu casebre tem um pé mamoeiro / onde eu passo o dia inteiro / campeando a minha mágoa".

O PASQUIM - Nesse tempo todo de sucesso aqui no Rio, você nunca foi tentado a se estabelecer aqui?
LUPISCINIO - Eu gosto muito do Rio Grande do Sul.

PASQUIM - As tuas raizes estão lá, e tal.
O PASQUIM - Lupi, e os convites que você teve para ficar em São Paulo?

LUPISCINIO - Eu tive diversos convites. Até me deram um bar uma vez. Uma moça lá que eu namorei, até um bar me deu de presente. "Fica aqui que eu te dou o bar".

O PASQUIM - O homem é bom de bico. Até ganha bar. Quando foi isso?
LUPISCINIO - 1968, mais ou menos.

O PASQUIM - E você não quis o bar?
LUPISCINIO - Eu fazia um show no "Chicote" e tinha a moça do bar que ia me buscar todo o dia. "Se tu quiser ficar aqui e morar em São Paulo tu fica com o bar pra ti". Mas nem ganhando um bar de presente eu não quis ficar.

O PASQUIM - É verdade que você fez o hino do Internacional?
LUPISCINIO - Não! Eu fiz o hino do Grêmio.. Sou do contra (canta): "Até a pé nos iremos / para o que der e vier Mas o certo é que nós estaremos com o Grêmio onde o Grêmio estiver".

O PASQUIM - Você sendo de tradição tão popular de comportamento, o Internacional é um clube muito mais ligado a sua família. Dos 21 irmãos, quantos eram Grêmio?
LUPISCINIO - Lá é a metade por metade. Metade é gremista, metade é colorado.

(Todos riem)


O PASQUIM - Vinte e um não dá metade.

LUPISCINIO - Tem um voto de Minerva. São 4h15. São quatro horas da madrugada e nós estamos aqui numa roda maravolhosa tocando músicas, e não pensamos parar ainda. Nós vamos continuar lá no "Grego", porque tem uma porção de amigos nos esperando lá para festejar um aniversário que começou ontem. Aniversário do meu amigo Albino Pinheiro.



(Corte. O local agora é o Restaurante El Grego. Muita movimentação e vozes falando ao mesmo tempo. Ritmo da entrevista: devagar, ou seja, ritmo de porre e madrugada. Fundo musical: Roberto Carlos.)
Para continuar conferindo a entrevista completa (que é muito grande, pois foi feita ao longo de toda uma madrugada), acesse:


*Origem: O Som do Pasquim: Grandes entrevistas com os Astros da Música popular Brasileira. 2ª ed., Rio de Janeiro: CODECRI, 1976, pp. 65-76.

Ouça algumas das maravilhosas músicas do Lupicínio Rodrigues com grandes intérpretes brasileiros:

Linda Batista / Vingança
Maria Bethânia / Loucura
Gal Costa / Volta
Ciro Monteiro / Se Acaso Você Chegasse
Gilberto Gil / Esses Moços
Nelson Gonçalves / Quem Há De Dizer
Orlando Silva / Zé Ponte
Paulinho da Viola / Maria Rosa

Um comentário:

  1. BAh, cara, tri bacana! Como é bom saber que o nosso querido Lupi é lembrado como um dos grandes compositores dessa nação! Abraços desde Porto Alegre!

    ResponderExcluir