quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Até novembro, as remessas somam US$ 44,230 bilhões

Por Carlos Lopes*

Quase o dobro do saldo comercial desde janeiro

Durante todo o ano passado, entraram no país (já descontadas as saídas) US$ 1 bilhão e 133 milhões em “investimentos estrangeiros em carteira” (IEC) - dinheiro meramente especulativo, para manipulações na Bolsa, para papéis do governo com juros altos, para cassinos de “derivativos”, etc.
Neste ano, de janeiro até novembro, e com os bancos, empresas e fundos dos EUA quebrados, já entraram 38 vezes o montante do ano passado: US$ 43 bilhões e 71 milhões (cf. Boletim do BC, 17/12/2009). Qualquer matuto desconfiaria que debaixo desse angu cambial tem alguma coisa desagradável. Porém, o ministro Guido Mantega disse, na entrevista que comentamos em nossa última edição, que “teremos um déficit em transações correntes, que será coberto por poupança externa”. Então, por que ele mesmo estabeleceu 2% de IOF sobre as entradas especulativas?
O problema é: o que está causando o déficit? De janeiro a novembro, o déficit nas “transações correntes” (balança comercial + serviços + rendas + transferências unilaterais correntes) chegou a US$ 18 bilhões e 77 milhões, apesar da balança comercial estar superavitária em nada menos do que US$ 23 bilhões e 256 milhões. Logo, esse déficit se deve às remessas para o exterior em “rendas” e “serviços” (as “transferências unilaterais correntes” - em geral, envio de dinheiro por parte de brasileiros no exterior – não interferem no resultado: em 11 meses, foram US$ 2,9 bilhões).
A totalidade dessas remessas somaram US$ 44 bilhões e 230 milhões. Ou seja, quase o dobro do saldo comercial. Em suma, estamos sendo sangrados pelas remessas de lucros, declaradas ou ocultas.
A propósito, existem muitas formas de mascarar remessas de lucros. Nos pagamentos de “serviços”, frequentemente são ocultadas como “serviços financeiros”, “royalties e licenças”, e, inclusive, como pagamento de fretes, já que parte ponderável – aliás, mais de 50% - das exportações e importações das multinacionais é realizada dentro da própria companhia; a mesma coisa quanto ao pagamento dos serviços de “computação e informações” e nos “aluguéis de equipamentos”. Certamente, nem toda despesa com esses serviços é remessa de lucros. Porém, somente isentaríamos dessa possibilidade as “viagens” e “serviços governamentais” - que, no período, constituíram cerca de 13% das remessas.]
No momento, já estamos cobrindo esse déficit com “poupança externa”, exatamente quando os EUA invadem outros países com pororocas de dólares sem lastro, para saqueá-los através da especulação – e, via sobrevalorização das outras moedas, através do comércio exterior.
No período citado, entraram US$ 20 bilhões e 858 milhões em “investimento direto estrangeiro” (IDE - dinheiro sobretudo para comprar empresas ou aumentar a participação no capital). Porém, cobrir o rombo com o IDE – isto é, liquidando mais uma parte do capital nacional e de empresas nacionais – é aumentar o rombo em pouco tempo, pois ele implica em aumentar as remessas para o exterior, na medida em que as empresas que engole passam a enviar lucros para a matriz.
No momento nosso crescimento é baixo, mas não pretendemos ficar assim até o dia do Juízo Final. Ao acelerarmos outra vez, será inevitável um aumento nas importações, sobretudo com a enxurrada de dólares que invade o pais, sem que as exportações, travadas pela invasão da moeda americana as compensem. Portanto a tendência do déficit seria, também por aí, a de aumentar, tornando-nos dependentes do capital especulativo - e derrubando outra vez o crescimento.
Já abordamos, em outras matérias, o crescente sangramento causado pela entrada de IDE. Como frisa um dos poucos economistas brasileiros que se especializaram no estudo das multinacionais, em artigo ainda de 2006, “das 500 maiores empresas globais listadas na revista Fortune, cerca de 440 já possuem operações no Brasil (….) o IDE demanda remessas futuras de lucros e dividendos ao exterior” (Antonio Corrêa de Lacerda, “Os investimentos estrangeiros e o Brasil”).
Entretanto, em 2006 o IDE foi de US$ 18 bilhões e 822 milhões. Em 2007, dobrou: US$ 34 bilhões e 585 milhões. Em 2008, alcançou US$ 45 bilhões e 60 bilhões.
Houve quem se regozijasse por essa entrada e achasse que essa desnacionalização em massa de empresas brasileiras era um sinal espetacular de sucesso econômico – e até pregasse que esta era a base para o nosso crescimento, tecendo loas a “investment grades” e outras besteiras que, poucos meses depois, estariam na sarjeta de Wall Street, junto com os seus inventores.
Como a realidade comprovou e está comprovando, “por mais atrativo que o país venha ser na atração de investimento externo, a dinâmica das economias é dada mesmo pelo investimento doméstico. Até mesmo no caso chinês, campeão de atração de IDE, o investimento estrangeiro responde por menos de 10% do total de investimento total. Ou seja, 90% do investimento realizado é financiado por capital ‘made in China’” (Antonio Corrêa de Lacerda, art. cit.).
E, mais detalhadamente, em outro artigo:
“Na média, 90% da Formação Bruta de Capital Fixo (FBKF), o total dos investimentos públicos e privados dos países, é realizada com recursos próprios. (….) mesmo no caso dos países asiáticos, em que a FBKF é superior a 30% do PIB a parcela dos investimentos diretos estrangeiros (IDE) equivale a menos de um décimo do investimento total. No caso da China é muito comum que se destaque o fluxo de ingresso de IDE, que foi de US$ 72 bilhões no ano passado [2005], montante que deve ser superado esse ano. Ocorre que a FBKF chinês foi de 42% do PIB, ou algo próximo de US$ 800 bilhões. Nesse caso o IDE contribuiu na forma bruta em (apenas) 8%” (Antonio Corrêa de Lacerda, “O papel do investimento estrangeiro para os países”, novembro, 2006).
Além de que “[o IDE] é cada vez mais relacionado às operações de fusões e aquisições de empresas no exterior, do que a novos projetos (green field investments). Ou seja, o chamado investimento é em muitos casos uma mera transferência patrimonial” (grifo nosso), prossegue o autor, “o IDE terá sempre um papel marginal, complementar. A dinâmica das economias será sempre dada pelo investimento doméstico. Não é adequado exigir-se do IDE aquilo que historicamente não lhe coube. Ou seja, o Estado e o capital privado doméstico precisam estar presentes e liderar os investimentos”.
Parece óbvio, pela simples razão que o IDE obedece à dinâmica de outra economia – portanto, não pode ser base do crescimento da nossa economia.
Pode-se corrigir erros anteriores ou pode-se mantê-los – mas, nesse caso, somente à custa de aumentar os erros e o seu tamanho para, dentro em breve, estar pendurado não no IDE, o que já seria melancólico, mas no capital especulativo, e no momento em que ele é mais agressivo ao país.

*Carlos Lopes é diretor de redação do Hora do Povo

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