quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Said Barbosa Dib

O bispo “bem intencionado” e as verdades históricas

"A indignação moral é a inveja com uma auréola." (H. G. Wells)

As Escrituras estão sempre certas. Realmente o conhecimento da Verdade liberta. E é com este espírito que se deve ler a “reflexão cidadã” contida no artigo “Liberdade de imprensa ou liberdade de empresa?”, de um tal Dom Robinson Cavalcanti, Bispo Diocesano da Igreja Anglicana em Paripueira (AL). Ele fala sobre o papel nefasto da imprensa brasileira no processo político. Diagnostica até bem a doença, mas peca na identificação das causas e dos agentes da enfermidade, além de cometer alguns poucos, mas perigosos equívocos históricos. Logo no início do ensaio, o missivista vai direto ao ponto: “Viajando pelo interior de 25 unidades da nossa Federação, encontrei 90% de suas emissoras de rádio nas mãos dos chefes políticos locais”. Até aí tudo bem. Falou o óbvio. Esqueceu-se apenas de falar do mais importante: as transnacionais sediadas em São Paulo que manipulam muitos desses “chefes locais” e que nunca suportaram a luta de Sarney contra as desigualdades sociais. Mas logo em seguida pisa na bola. Requenta matéria da revista “Carta Capital” de algum tempo atrás: “o que foi agravado com o festival de concessões para a extensão do mandato do Presidente Sarney”.
Para não pegar no pé de um homem “santo” (e bem intencionado?) é melhor ir logo na origem do erro: Carta Capital, de junho de 2006, edição 401. Título da matéria de Ana Paula Sousa e Sérgio Lírio: “Relação nada casual”. No texto os “jornalistas” tentam mostrar as pressões de emissoras e parlamentares, em ano eleitoral, por mais concessões de rádio para políticos. Legal! Mas, para respaldar suas teses presentes (era o ano eleitoral de 2006) a reportagem manipulou o passado. Isto porque, tentando fazer um breve histórico das relações entre parlamentares e veículos de comunicação desde a “Nova República”, pecou por partir de um “fato” equivocado que, pela vontade subjetiva de maus jornalistas, se tornou o que seria um caso clássico de “toma lá, dá cá”. A revista afirma: “Junho de 1988. O presidente José Sarney pressiona a Assembléia Constituinte para ampliar o seu mandato de quatro para cinco anos”. Mentira. Este foi um dos maiores erros da mídia, no Brasil. Passaram ao público a idéia de que Sarney teria prorrogado seu poder em um ano quando, na verdade, ele abdicou de um ano. Seu mandato, firmado no termo de posse assinado pela mesa do Congresso, em função da lei então vigente, expirava em 1991, no mês de março. Era, portanto, um mandato de seis anos, como fora previsto o do presidente Figueiredo.
Mas, para pacificar o ambiente, já tumultuado pelo açodamento de alguns candidatos a sua sucessão, Sarney, sempre um conciliador, declarou que “aceitava a fórmula de cinco anos". Ou seja, ele não ganhou mais um ano. Pelo contrário, abriu mão de um ano em benefício da estabilidade política. Foi aí que os espertalhões se aproveitaram para desencadear a campanha pelos quatro anos. Em entrevista concedida em janeiro de 2001, a Benedito Buzar, Sarney desabafou: “eu cometi um erro, confesso! Devia ter ficado calado. Caso a Constituinte fixasse meu mandato em quatro anos, bastaria ir ao Supremo, que confirmaria os seis, pelo direito adquirido pelo diploma que me outorgaram. Mas nossa preocupação não era essa, era com o Brasil, que passava um momento delicado de transição democrática”.
Depois, tentando associar a questão do mandato de Sarney com o aumento das concessões de rádio no período, “Carta Capital”, sempre simplista, erra novamente ao afirmar: “a poucos metros do Palácio do Planalto, o ministro das Comunicações, Antonio Carlos Magalhães, comandava a maior farra da radiodifusão jamais vista. Mais de 1.200 canais de rádio e tevê distribuídos a aliados do governo. Os cinco anos para Sarney são aprovados”. O que os jornalistas não quiseram entender é que, saindo de uma ditadura de mais de vinte anos, onde o controle ferrenho sobre os veículos de comunicação – e as forças democráticas - era uma realidade, os membros da oposição peemedebista estavam totalmente alijados da mídia pelos militares. Durante a ditadura as concessões foram praticamente congeladas . Por isso, naquele momento delicado de transição democrática, havia a necessidade de se acertar as desigualdades provocadas pela ditadura. Era necessário reconstruir a imprensa livre no País. Nada mais normal do que dar vez e voz àqueles que durante mais de vinte anos lutaram contra o arbítrio. Não foram “1.200 canais de rádio e tevê distribuídos a aliados do governo”, mas 1200 canais distribuídos para aqueles que enfrentaram a ditadura e que tinham sido calados e marginalizados por isso. Eram membros do PMDB, aliados históricos de Tancredo, não de Sarney. O mesmo PMDB que foi eleito à custa da popularidade do Plano Cruzado para a Constituinte e que, ao final do governo Sarney, deu as costas ao presidente. Mas esta é uma outra história.
A verdade é que, quando se quer arranhar a figura de um político, alguns jornalistas não medem esforços. Como já se disse, “no jornalismo o tecido atingido pela calúnia não se regenera”. As feridas abertas pela difamação não cicatrizam. A retratação nunca tem o mesmo espaço das acusações. E, mesmo que tivesse, a credibilidade do injustiçado nunca é restituída na mesma proporção, pois a mentira fica marcada no imaginário popular. E “Carta Capital” não agiu de outra forma. Construíram e associaram, tendenciosamente, dois fatos isolados que se passaram durante a Nova República, mas que não tinham relação de causa e efeito entre si. A “relação nada casual” do título da reportagem não deveria ser entre os cinco anos de Sarney e as concessões do Ministério das Comunicações, mas entre o mau jornalismo e os interesses não de “políticos locais”, mas de transnacionais estrangeiras que querem desagregar as instituições políticas brasileiras. Que querem fazer com que o povão tenha ódio de seus políticos eleitos. E isto é ruim para a democracia. Democracia que Sarney ajudou a construir.
Quanto ao bispo, só se pode imaginar que se trata de um pau-mandado de algum “Macarujá Murcho” do quadro eleitoral de Pernambuco. Se não for isso, talvez possa se cogitar na hipótese apenas de inveja mesmo. Sentimento que, segundo o romano Publio Siro, "só o homem corajoso ou o bem sucedido pode suportar”. E é este o caso de Sarney, que foi governador, deputado e senador pelo Maranhão, presidente da República, senador do Amapá por três mandatos consecutivos, presidente do Senado Federal por três vezes. Tudo isso, sempre eleito. São 55 anos de vida pública. É também acadêmico da Academia Brasileira de Letras (desde 1981) e da Academia das Ciências de Lisboa. E quem é Dom Robinson Cavalcanti?

Said Barbosa Dib é historiador e analista político em Brasília

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