quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Aposentados e pensionistas: as eleições vêm aí...

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A política brasileira é repleta de mitos que a imprensa e os defensores do neoliberalismo muitas vezes ajudam a reafirmar, perpetuando clichês e até mesmo propagando incorreções. O debate sobre o “déficit” da Previdência, por exemplo, padece dessa doença crônica, a ponto de a segunda palavra parecer, invariavelmente, ter de vir acompanhada da primeira. Mas será que, de fato, é déficit o que existe no sistema nacional de aposentadorias?

O Ministério da Previdência anunciou recentemente que o setor teria amargado R$ 2,7 bilhões de déficit em junho e R$ 22,832 bilhões no primeiro semestre de 2010.

Gabas

Alguns veículos forçaram a mão dizendo que tais números demonstrariam um “rombo” nas contas. “Não há rombo nenhum”, respondeu o ministro Carlos Eduardo Gabas, em julho, quando do anúncio dos números da Previdência. O presidente Lula, por sua vez, afirmou que “é melhor a Previdência ter dívida do que um cidadão morrendo de fome”.

Em março, o presidente afirmou, ainda, que “se pegarmos o que pagam os trabalhadores e o que eles recebem, empata tudo. Não há déficit. Se você analisa tudo o que colocamos na Constituição, aí aparece um déficit de R$ 45 bilhões, que não é déficit. Foi uma decisão do Estado de fazer uma política de seguridade social para o povo mais pobre”.

Apesar disso, a cada anúncio das contas, o noticiário segue a toada histérica de que o sistema vai mal, beirando o abismo das contas públicas, ignorando assim o que, de fato, os números significam.

Flávio Tonelli, especialista em orçamentos públicos e assessor técnico da Liderança do PCdoB na Câmara, descarta o discurso do déficit. “Fico impressionado como a grande imprensa tem um papel de cristalizar alguns conceitos que todos vão assumindo como verdades. É tão absoluto que nem se questiona”, diz.

Para ele, é preciso inverter a lógica. “As pessoas acham que a Previdência vai mal porque tem muita despesa. Na verdade, ela vai mal quando se tem muitas pessoas sem direito a ela”.

Tonelli realizou estudo ainda não publicado que funciona como uma radiografia do sistema. O material aponta que as contas feitas sobre a Previdência ignoram questões importantes como o modelo de financiamento global da seguridade social, as renúncias previdenciárias e, até mesmo, a vinculação constitucional que existia entre uma parcela da CPMF e o Regime Geral da Previdência Social (RGPS).

Segundo ele, a insistência de se fixar nessa metodologia para a análise da Previdência deve-se, em boa medida, “à construção dos discursos de déficits e para o prenúncio da inevitabilidade de novos cortes nos direitos dos trabalhadores”.

Cobertura aos trabalhadores rurais é garantida pela Constituição

Previdência rural

Primeiramente, é preciso considerar que a Previdência urbana é superavitária. Em 2009, por exemplo, esse setor teve um saldo positivo de 13,92 bilhões de reais, o que corresponde a 0,44% do PIB.

No mesmo ano, o setor rural teve um saldo negativo de 28,82 bilhões de reais. A sobra advinda da área urbana cobre parte da área rural que, por sua própria natureza empregatícia – marcada pela alta informalidade e pelo fato de o recolhimento do INSS não ser individualizado, mas por produção -, demanda mais recursos.

Essa cobertura é garantida pela Constituição que, em seu artigo 201, parágrafo 9º, estabelece: “os diversos regimes de Previdência social se compensarão financeiramente, segundo critérios estabelecidos em lei”.

“Devido ao baixo grau de financiamento das atividades produtivas rurais, mediante a predominância da agricultura de subsistência, é impraticável que a Previdência rural seja financiada por contribuições individuais. Ao contrário, o sistema de segurado especial deveria servir de exemplo para os setores informais urbanos, que em virtude do elevado número de trabalhadores, deveria ser financiado por meio de tributos gerais”, escreveu o doutor em sociologia Clóvis Zimmermann na revista Espaço Acadêmico.

Portanto, a cobertura de um setor por outro não é uma benesse, mas um direito garantido em lei e que parte do princípio constitucional de que todo o brasileiro, independentemente de sua possibilidade de contribuição, pode ter acesso à aposentadoria.

“O que dizem ser déficit da Previdência na verdade corresponde à parcela de encargos previdenciários rurais que não dispõem de receita suficiente. Mas, existem recursos do Fundo de Seguridade [Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins); Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e Pis-Pasep] que cobrem perfeitamente essa diferença”, diz o economista e professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), Dércio Garcia Munhoz.

Cálculo oculto

Outro ponto que deve ser levado em conta é que quando se fala em déficit da Previdência, costuma-se deixar de fora itens importantes como o peso das renúncias e da CSLL, bem como as dificuldades advindas do fim da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), que deixou de ser cobrada em janeiro de 2008. Inclusive, no Fórum Nacional de Previdência, em 2007, ficou definido que os números sobre a Previdência viriam acompanhados de tais informações, o que não tem sido feito.

Para se ter uma ideia, considerando o último ano da CPMF, dados da Receita Federal e do Ministério da Previdência usados no mesmo estudo mostram que as informações divulgadas em 2007 levavam a um resultado negativo de 44,8 bilhões (-1,69% do PIB). Porém, quando consideradas CPMF, CSLL e renúncias variadas – não divulgadas juntamente com os demais dados da Previdência – a diferença cai para -20,3 bilhões (-0,77% do PIB).

Em 2009, os valores divulgados mostravam diferença entre receita, despesas e compensação previdenciária na ordem de -42,8 bilhões (-1,36% do PIB). Levados em conta os itens anteriormente listados – com exceção da CPMF e considerando em seu lugar as receitas da CSLL relativas às instituições financeiras – a diferença dos cálculos cai para -15,9 bilhões.

“Ao idealizar essa pluralidade de fontes, o constituinte [de 1988] afastou a especificação. A Previdência não deveria ser sustentada exclusivamente pelas contribuições sobre a folha de salários ou sobre os rendimentos do trabalho. Somente a pluralidade de fontes é capaz de, aquilatando a capacidade contributiva, melhor distribuir os encargos sociais para garantir os direitos relativos à saúde, Previdência e assistência social”, colocou Ovídio Palmeira Filho, membro do conselho curador da Fundação Anfip de Estudos da Seguridade Social, em palestra ministrada em 2007.

Seguindo essa lógica, o fim da CPMF foi um golpe forte nas contas da Previdência, já que dos 0,38% de sua alíquota, 0,10% eram utilizados para compensar a baixa contribuição da área rural. Ou seja, de uma hora para outra, sem nenhuma compensação, foram tirados R$ 10 bilhões ao ano da aposentadoria rural. “No debate sobre o fim desta contribuição, houve grande interesse por parte da oposição de inviabilizar ações do governo. A área da saúde tinha um orçamento de R$ 56 bilhões e de repente retiraram R$ 40 bilhões dele”, argumenta Flávio Tonelli.

Queriam privatizar a Previdência, diz Munhoz

Origens do “déficit”

A Constituição de 1988 ampliou o direito à aposentadoria aos trabalhadores rurais “que até então eram praticamente marginalizados, não tinham benefício e nem sequer o salário mínimo como a base de sua aposentadoria”, explica o professor Dércio Munhoz.

A regulamentação desse dispositivo veio apenas no começo dos anos 1990. “O que aconteceu então é que havia um volume muito grande de pessoas da área rural com direito ao benefício, mas ainda sem acesso a ele e essas pessoas passaram a procurar o INSS para se registrar”, diz.

Ao mesmo tempo, no bojo da onda neoliberal, havia pressões de setores internos interessados em privatizar o sistema previdenciário brasileiro, como ocorrera em 1981, no Chile do ditador Augusto Pinochet. Aproveitando-se do grande volume de pessoas que procuravam a Previdência, esses setores diziam que o sistema quebraria.

“Muita gente ficou aguçada, querendo ganhar dinheiro fácil e houve uma pressão grande sobre o governo. Queriam privatizar a Previdência – iniciativa abortada pelo Congresso – sob o pretexto da sua quebra, embora fosse claro que se estava apenas regularizando o estoque, tanto é que quando houve a mudança de governo, houve uma redução brutal no número de novos pedidos de benefícios rurais”, lembra Munhoz.

A estagnação econômica dos anos 1990 foi outro fator que alimentou o discurso do déficit. Afinal, com a economia nessa situação, era grande o desemprego; as ocupações informais e a precarização das relações de trabalho aumentaram e, por conseguinte, a arrecadação diminuiu. Mesmo a Previdência urbana, historicamente superavitária, já não era suficiente para dar conta das despesas. “Mas, isso não era problema porque a Constituição de 1988, ao trazer o conceito de seguridade, deu-lhe receitas próprias: o Cofins, a CSLL e o PIS-Pasep”, acrescenta o professor aposentado.

Fator previdenciário

A era FHC apenas reforçou a ideia do “déficit” da Previdência e, em nome dele, estabeleceu o fator previdenciário em 1999 com o argumento de que, assim, seria possível diminuir os gastos do setor.

“Sempre achei o fator uma injustiça por uma razão muito simples: uma pessoa que se aposenta ainda nova começou a trabalhar com uma idade muito baixa. E o fator veio dizer o seguinte: se você vai se aposentar mais jovem, vai viver muito tempo à custa da Previdência; portanto, você tem de ter o valor menor da aposentadoria”, coloca Dércio Munhoz.

“Num determinado momento do governo FHC, começaram a querer confundir a opinião pública como se a Previdência fosse um sistema de capitalização e o regime geral da Previdência nunca foi sistema de capitalização, mas um sistema de repartição: as receitas correntes cobrem os compromissos correntes”, completa.

Flávio Tonelli concorda: “É draconiano. E o pior é que quem mais defendeu o fim do fator foram justamente aqueles que o instituíram. É demagogia pura, barata e eleitoreira. Outros defendem o fim do fator, mas o estabelecimento da idade mínima, o que é ainda pior porque significa que uma pessoa, aos 55 anos, mesmo que precise se aposentar por ter ficado desempregada, não pode”.

Recentemente, o governo poderia ter acabado com o fator, mas ele foi mantido. Pesaram para isso os interesses dos empresários do setor de previdência privada e a dificuldade dos movimentos sociais em exigir o fim do dispositivo.

Mas, na opinião de Munhoz, a manutenção do fator previdenciário aconteceu principalmente porque “existe uma pressão internacional muito grande por parte do capital financeiro, que prega a preservação de boa parte da receita dos impostos para o pagamento de juros. As altas taxas que se praticam no Brasil – e o Banco Central segue aumentando – exige mais despesa, mais encargos; a carga tributária cresceu justamente para cobri-los. A prioridade tem sido pagar juros, satisfazer a pressão do capital financeiro. Os últimos aumentos do BC fizeram crescer a despesa anual de juros do Tesouro em bilhões de reais que poderiam cobrir quase tudo que se paga à Previdência rural”.

Tonelli: visão sobre Previdência distorce realidade

Situação atual

Outro fato nem sempre tratado é o desempenho da Previdência nos últimos anos. Desde 2004, a diferença chamada de “déficit” vem diminuindo consideravelmente frente ao PIB e, mesmo com a crise que mexeu com os resultados de 2008 e 2009, a tendência permaneceu.

“O ano de 2008, mesmo com a crise diminuindo o ritmo de contratações a partir de outubro, foi o quinto ano sucessivo de grande geração de empregos. As receitas cresceram R$ 22,9 bilhões, superando, até numericamente, o aumento das despesas de R$ 14,2 bilhões. E o saldo a ser coberto com as demais contribuições sociais diminuiu para 1,2% do PIB – e se consideradas as renúncias previdenciárias, esse saldo cai para 0,48% do PIB”, aponta Tonelli em seu estudo.

Ele completa dizendo que “algumas pessoas, apoiadas pela grande mídia, apresentam-se como analistas da questão previdenciária e insistem que a Previdência Social tem dois graves problemas. Primeiro, que concede direitos em demasia, o que determina um alto custo para a sociedade brasileira. Segundo, que estipula exigências para acesso às aposentadorias e pensões em descompasso com o perfil demográfico da sociedade, pois as pessoas hoje vivem mais e, portanto, usufruem parcela maior de suas vidas como aposentado ou pensionista”.

Para Tonelli, a focalização nesses dois problemas não é aleatória. “Estabelecer que a Previdência deva ser analisada e reformada exclusivamente sob essa ótica, localiza as reformas exclusivamente no campo das despesas, o que somente pode ser feito mediante corte de direitos. Para diminuir as possibilidades de efetiva solução, promove-se uma distorção na realidade”.

Ainda de acordo com o especialista, a questão que, de fato, precisa ser enfrentada hoje é a baixa cobertura previdenciária.

“O problema que há na Previdência é justamente o que não vem sendo discutido: a existência, nas grandes cidades, de um percentual muito grande de trabalhadores que sempre ficaram ocupados na marginalidade. O ponto, portanto, é como assegurar o direito à Previdência, que é um direito de todos os trabalhadores, a quem já foi excluído de tantos outros direitos”.

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