terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Pedro Tomaz de Oliveira Neto

O “homem do chapéu” e a grande farsa

O deputado Múcio Ataíde ainda cumpria mandato como representante do Estado de Rondônia quando decidiu mudar seu domicílio eleitoral para Brasília. A capital federal vivia a expectativa de conquistar sua autonomia política a partir da redemocratização do país e da vitória, quase certa, de Tancredo Neves como novo presidente do Brasil.
Brasília parecia ser um mercado eleitoral promissor, com a maioria de sua população vivendo na periferia, sempre propensa ao populismo e ao clientelismo. Era esse povão que Múcio contava para renovar a sua imunidade parlamentar, essencial para escapar dos vários processos criminais que pesavam sobre ele.
Esbanjando dinheiro e poder, desembarcou na cidade com fome de votos. De início, comprou uma gráfica e lançou seu próprio jornal. Depois adquiriu uma fábrica de chapéu e passou a se apresentar aos brasilienses como "O Homem do Chapéu".
Pegando carona na campanha da oposição ao regime militar, Múcio Ataíde teve a ideia de organizar um megacomício de apoio a Tancredo e, de quebra, em defesa da emancipação política de Brasília. O ato foi programado para uma noite de quarta-feira, em Ceilândia, a mais populosa cidade-satélite do DF.
Múcio não economizou para fazer desse evento um marco na história de Brasília. Fez farta distribuição de chapéus aos ceilandenses; carros-propaganda anunciavam em todos os bairros da cidade o comício, destacando as presenças de Tancredo, de Ulysses Guimarães, o "Senhor Diretas", e dos artistas Milton Nascimento e Fafá de Belém, além, é claro, de si próprio, agora com a alcunha de "O Homem do Chapéu".
Naquele grande dia, pouco antes das 5 da tarde, já havia mais de 30 mil pessoas, quase todas com um chapéu de palha na cabeça. Enquanto aguardava as grandes estrelas da noite, o povão era animado por artistas e por líderes locais, sem contar um show pirotécnico e alguns jingles que enalteciam o mais novo defensor de Brasília. Volta e meia, o locutor oficial do evento estava sempre lembrando:
— Já, já, aqui com vocês: Tancredo Neves, Dr. Ulysses, Milton Nascimento, Fafá de Belém e ele, o Homem do Chapéu, deputado Múuuuuucio Ataíiiiiiiiiiiide.
A noite chegou e no palanque seguia aquela ladainha: artistas sem expressão e lideranças comunitárias se revezavam. A cada meia hora, alguém lá de cima jogava chapéus para a multidão. Novos rojões eram soltos, mas nada das atrações anunciadas. A organização esclarecia que a comitiva de Tancredo se atrasara devido a outros compromissos, mas logo estaria chegando. Bom, o jeito era esperar. A noite estava agradável e a chance de ver o futuro presidente do Brasil bem de pertinho e de ouvir a Fafá de Belém era única. Valeria esperar um pouco mais. Mas, lá pelas oito da noite, surgiam os primeiros sinais de impaciência e de cobrança. Do palco já se ouvia muitos resmungos vindos da multidão:
— Cadê o presidente? Cadê a Fafá? Como é que é, os “home” vão vir ou não?
Em resposta, mais chapéu, mais desculpas pelo atraso e mais fulanos, sicranos e beltranos de tal cantando e discursando sem serem mais notados pelo povão.
Nove da noite. O jingle tocado passa a ser incidental. Parece que agora vão anunciar a presença de Tancredo Neves, ou ao menos a do Dr. Ulysses, ou, quem sabe?, do Milton e da Fafá.
— Povo de Ceilândia, com vocês aquele que veio para mudar Brasília; que veio para dar o direito de voto a nossa cidade. Com vocês: o Homem do Chapéu, deputado Múuuuuucio Ataíiiiiiiiiiiide!!!.
De repente, seguido por um raio de luz, o deputado, vestido como John Wayne e acenando com o chapéu para a multidão, aparece no palco de forma triunfal. Lá embaixo, era nítida a decepção do povo e as vaias multiplicaram-se. Sorridente e arremessando chapéus, Múcio consegue a atenção da multidão para falar:
— Brava gente de Ceilândia, como sempre, estou aqui com vocês na luta pelo direito de voto dos brasilienses.
— Queremos Tancredo!!! — exigia o povão em coro uníssono. — Queremos Dr. Ulysses!!! Queremos Milton!!! Queremos Fafá!!!
Contrariado, pois achava que sua presença era suficiente para suprir a ausência dos anunciados medalhões, o Homem do Chapéu insistia em falar, agora preocupado em dar explicações ao povo irado:
— Venho aqui fazer uma denúncia muito grave. Quero dizer a vocês, meu povo, que Ceilândia acaba de ser discriminada, pois a cúpula do PMDB nacional impediu nosso querido presidente Tancredo Neves de vir a Ceilândia, essa cidade maravilhosa, habitada por cidadãos honrados e trabalhadores. Mas...
As desculpas esfarrapadas ensaiadas pelo deputado foram a gota d'água pra que o discurso fosse interrompido e o palanque invadido pelo povo e por uma chuva de pedaços de pau, sapatos e de todo objeto arremessável. Assustado, Múcio conseguiu descer e se abrigar providencialmente numa casa ao lado que funcionava como comitê do forasteiro. A polícia interviu e evitou um linchamento, mas não impediu que todo o palco do comício fosse totalmente destruído.
Mesmo com o fracasso, Múcio não desistiu. Na primeira eleição em Brasília, se candidatou ao Senado. Mas, por abuso de poder econômico, a justiça eleitoral cassou a sua candidatura. A partir de então, a capital federal nunca mais ouviu falar no Homem do Chapéu.

Pedro Tomaz de Oliveira Neto
é historiador e cientista político em Brasília

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